Capítulo 16
Entre a Cruz e a Espada
Uma ventania fria soprava. A lua já não estava mais em seu auge, mas dominava os céus enegrecidos daquela noite. Àquele horário da madrugada, em rotas mais afastadas, o movimento ainda era nulo, senão por alguns Pokémons noturnos que utilizavam aquele momento do dia para praticar suas atividades.
O Parfum Palace dormia. Quando já não havia visitas transitando pelos corredores, estes ficavam vazios e até mesmo sombrios. O único barulho, de fato, era o eco dos roncos do tio Louis, que atravessava as paredes e alcançava quase todos os pontos do palácio.
Enquanto todos estavam estáticos, em profundo sono, alguém fez um ligeiro movimento. Calem suspendeu as costas, sentando-se na cama, de um instante a outro. Ficou por alguns momentos sentado, encarando a parede à sua frente, sem fazer qualquer movimento.
“Eu estou aqui. Venha até mim.”
Calem moveu as cobertas para o lado, dando espaço para que seus pés deslizassem para a beira da cama, levantando-se. Estava vestindo um pijama azul celeste, fino, e não o trocou ao se levantar. Não pegou seus chinelos, permaneceu descalço. Apenas deu alguns passos, transpassando por Serena e Charlie e chegando até a porta do quarto onde dormiam, onde deixou.
O rapaz andava de maneira sistemática, e nada falava. O som de seus pés descalços no tapete do corredor era quase inaudível, de maneira que não se percebesse qualquer movimento.. Parecia estar sob algum tipo de transe. Ainda assim, desceu as escadas e chegou até a porta de entrada do palácio. Ficou por alguns instantes a encarando, também.
Venha.
Com uma forte rajada de vento, as portas escancararam, de forma que o garoto pudesse seguir em frente. Seus pés livres alcançaram a fria pedra que cobria o chão externo ao Parfum Palace. Sem hesitar ou mudar a expressão do rosto, ele continuou caminhando, sem qualquer menção, ou qualquer sinal de emoção. Seus olhos, apesar de abertos, talvez nem enxergassem direito.
Concomitantemente, no quarto, Serena moveu-se em seu colchão. Abriu pouco seus olhos azuis, e deparou-se com a cama vazia de Calem. Ainda que o sono lhe tentasse forçar a fechar as pálpebras, abriu-as com mais intensidade, notando a verdadeira ausência do primo. Como um reflexo, verificou um relógio, e notou que passara pouco das quatro da manhã.
A menina colocou-se de pé, caminhando até a porta do quarto e tentando olhar pelo corredor, inutilmente, uma vez que estava tudo tão escuro que sequer conseguia enxergar alguns metros à sua frente. Em seguida foi até Charlie, em uma terceira cama, e tocou suavemente o ombro do menino, que dormia profundamente.
Charlie abriu os olhos verdes sutilmente, enquanto ouviu a voz doce, apesar de ainda exausta, de Serena:
— Charlie. — ela chamou. — Charlie. — chamou mais alto, e agora ele de fato a encarava. — O Calem sumiu, mas as coisas dele estão aqui.
Charlie virou-se na cama, puxando as cobertas mais para si.
— Deve estar só se lavando, ou limpando as camas. — disse, tentando voltar a dormir, com uma voz sonolenta.
— Não. Sinto que alguma coisa ruim está acontecendo. — ela disse, enquanto encarava pela porta o corredor escuro novamente.
O rapaz voltou a se virar para ela, fitando um relógio próximo com os olhos entreabertos.
— Serena, são quatro horas da manhã. — resmungou.
— Eu vou sozinha procurá-lo, então. — disse a menina, com simplicidade.
A garota começou a colocar suas roupas por cima do pijama, e a vestir suas botas. Charlie tentava virar-se para dormir, mas sabia que não conseguiria.
— Por que ela sempre me convence? — reclamou para si mesmo, enquanto se levantava.
Serena deu um sorrisinho discreto de vitória, e aguardou que o garoto calçasse alguma coisa e vestisse uma camiseta.
Juntos, pegaram uma lanterna, cujo tio Louis havia oferecido caso precisassem. Como o Parfum Palace era uma estrutura antiga, não havia instalações elétricas, e àquele horário algumas velas já haviam se apagado. Restava apenas um palácio antigo cheio de confusos corredores e cômodos sinistramente escuros.
Charlie, com a lanterna na mão, foi na frente, enquanto Serena o segurava pelo ombro. Ainda que soubessem que estavam sozinhos, em segurança, ainda era um ambiente incômodo. Apesar dos sons do ronco do tio de Serena, era como se suas mentes lhes pregassem peças, e fossem capazes de ouvir ao longe o tilintar de espadas se chocando, os brados de guerra e os gritos de agonia. Talvez fosse apenas impressão.
Passaram pelo quarto do tio Louis, com a porta entreaberta. O senhor estava deitado de barriga para cima, com uma máscara de dormir — ainda que estivesse uma escuridão quase total no ambiente. — em um intenso sono.
— Esse lugar é um tanto sinistro de noite. Como seu tio consegue dormir aqui? — perguntou Charlie, sussurrando.
Serena observou a profundidade do sono do tio.
— Ele não parece ser do tipo que tem problemas com isso. — brincou ela, cochichando.
Ao chegarem ao fim do corredor, focaram a lanterna nas escadas, e as desceram. A luz parecia oscilante, em virtude da mão de Charlie, que inevitavelmente tremia. Estavam sozinhos, é claro, mas ainda assim levavam ligeiros sustos ao se depararem com algumas estátuas ou outros objetos de formato curioso. O menino parou por um instante, pedindo silêncio para Serena.
— Serena, está ouvindo esse barulho? — perguntou, baixinho.
A menina fez uma concha com a mão em volta do ouvido, passando a reparar por alguns instantes.
— Vento. — concluiu ela. — E está forte.
— A porta deve estar aberta. — completou ele.
Passaram pelos últimos corredores até chegarem à entrada, onde observavam a porta de entrada escancarada, enquanto uma corrente fria de vento entrava e movia as coisas ao redor. Da porta conseguiam observar que a noite estava com raras estrelas, e a lua estava suavemente encoberta pelas nuvens.
— Por que ele saiu? — perguntou Serena.
— Vamos descobrir. — disse Charlie colocando a lanterna em uma mesinha, e seguindo para fora.
Do lado de fora, já não se ouvia, claramente, o ronco do tio Louis. Em compensação, agora ouviam ao longe o som de alguns Pokémons que viviam nas rotas próximas. Caminharam pelo chão bicolor externo ao palácio, até chegarem ao portão de entrada. Serena olhou para trás, reparando no suntuoso palácio dourado, que de noite ainda parecia muito impositivo, e talvez até intimidador. Charlie comentou, sobre o portão:
— Está aberto.
A garota estranhou, uma vez que o palácio possuía alarmes, e mesmo alguns guardas, mas não havia ninguém além dos dois no momento. Não tinham ao certo como saber como Calem conseguira abrí-lo Apenas o atravessaram, deparando-se com o exterior do palácio.
Estava consideravelmente frio. A grama estava um pouco lisa pelo orvalho. Ao longe ouvia-se o som de Pokémons se remexendo e caçando. O local ao longe era um pouco sombrio, pois não se podia avistar muito entre as árvores e arbustos condensados na paisagem. Contudo, viam alguém caminhar cada vez mais distante, a passos lentos e vestindo pijamas.
— Não é ele lá? — apontou Serena, semicerrando os olhos.
— Parece que sim. — assentiu Charlie.
Ambos partiram correndo em direção ao rapaz. Os passos eram um tanto sutis, na esperança de não escorregarem, enquanto lutavam contra o frio. Os batimentos cardíacos concorriam com os ruídos ao longo da vegetação que ficava cada vez mais próxima. Calem, em mais alguns passos, entraria dentro de um conjunto de altos arbustos, o que seria uma escolha perigosa, dado o horário.
— Calem! Calem!
Charlie alcançou-o primeiro, colocando a mão em seu ombro e o virando. Soltou a mão imediatamente ao levar um susto. O garoto não parecia consciente. Os olhos estavam fundos e sem foco, enquanto a expressão estática do rosto não esboçou qualq uer reação mesmo após ser abordado. Quando Charlie o soltou, o rapaz continuou andando à frente da mesma maneira mecânica.
— O rosto dele… O que houve com o rosto dele? — indagou a menina.
— Isso está ficando muito estranho… — disse Charlie, um tanto ofegante. — Serena, olhe para os pés dele.
— Ele está… — a garota observou. — Descalço…
Ambos engoliram em seco. Calem nunca caminharia descalço no mato, especialmente durante a noite. Charlie tentou segurá-lo, mas ele continuava caminhando para a frente, quase hipnotizado, como se buscasse algo.
— Não consigo puxá-lo.
— Calem, me responda. — disse Serena, posicionando-se à frente do garoto. — Calem. Primo. — mesmo que continuasse chamando, ele não atendia.
Foi quando ouviram outros sons de passos. Ao longe, apesar da escuridão, conseguiam localizar alguns pontos de luz caminhando — talvez pessoas carregando velas. — em uma direção comum. Quando se distraíram para observar, Calem seguiu seu trajeto, parando a um passo de uma alta vegetação. Em seguida seguiu em frente, mesmo assim, desaparecendo em meio às folhas.
Já não conseguiam encontrá-lo pela vista, e tampouco poderiam persegui-lo entre o matagal, visto que durante a noite poderia esconder criaturas suficientemente perigosas para espantar a ideia. Um vento frio e forte soprou, balançando as folhas em uma harmonia perturbadora. Serena colocou a mão no rosto. Seu primo nunca agiria assim.
— Nós o perdemos. — falou, com uma voz frágil. — Charlie, estou ficando com medo.
— Não se preocupe, eu estou aqui. — falou ele, a abraçando, tentando esconder que seu coração também batia mais rápido, mas por motivos ruins.
Tentando contornar a vegetação alta, foram de encontro às pessoas ao longe, um tanto hesitantes. Todas caminhavam em silêncio, carregando consigo uma vela e algum objeto chamativo: algo para comer, alguma veste, flores, entre outros. Decidiram vencer a dúvida, indagando a uma senhora que transitava na mesma direção dos demais:
— Senhora, o que está acontecendo?
Tinham medo de que ela repetisse o comportamento de Calem. Por sorte, ela os fitou, serenamente.
— Vocês não são daqui, rapazinhos?
Ambos fizeram que não com a cabeça, um pouco aliviados.
— Espero não assustá-los com essa história… — ela sorriu, respirando fundo. —Mas há um espírito que perturba nossa vila, nas proximidades dessa rota.
Os dois engoliram em seco. Sem ao certo saber como reagir, apenas ouviram a senhora continuando os relatos.
— Incomoda nosso sono, assombra nossa vila, causa pequenos desastres… — listou ela. Uma vez por mês, então, nos reunimos para trazer oferendas, esperando que ele descanse.
A ideia era perturbadora, mas às quatro e meia da manhã, perseguindo um primo hipnotizado em meio a uma rota, nada mais parecia poder surpreendê-los. Ocasionalmente Serena dava beliscões sutis em seu braço, imaginando se não estava dentro de um pesadelo. Talvez fosse tudo coisa de sua cabeça, afinal de contas.
— E por que vocês não se mudam? — perguntou a menina, simplesmente.
A senhora deu uma risada um pouco sem jeito. Normalmente aqueles que formavam vilas em lugares perigosos ou em meio a rotas não tinham grandes condições de morar em outros lugares. Charlie, sabendo disso, deixou a senhora ir, mudando de assunto para com a menina
— Não que eu acredite nessa coisa de espíritos, e tudo mais… Mas será que isso tem alguma coisa a ver com o Calem? — perguntou.
— Só tem um jeito de saber.
Optaram por seguir o fluxo. Havia algumas poucas dúzias de pessoas, marchando lentamente. Entre eles, primordialmente idosos, mas alguns adultos também. As crianças possivelmente haviam sido deixadas em casa. O grupo seguia entre um caminho de terra ao qual a vegetação cobria ambos os lados. Era tão densa que não se podia avistar o que havia por trás, e ocasionalmente as folhas atravessadas tocavam a pele de quem transpassava, causando cócegas incômodas, como se fossem dedos que provocavam quem se aproximava.
Alguém sussurrou:
— Ele está ali.
Perceberam uma área mais espaçada entre as plantas, ampla suficiente para que todos se dispusessem em círculo. Tentando desviar das pessoas, os dois procuraram um espaço vazio para se colocarem. Afinal de contas, qual era a aparência de um espírito?
— É uma… — disse Charlie, achando uma brecha. — Espada…?
O pequeno círculo de pessoas entornava uma rocha antiga, com um objeto fincado em seu centro: uma espada. Ela parecia uma das expostas em museus e no Parfum Palace, com detalhes antigos, apesar de parecer bem conservada, diante das condições. Tinha um detalhe em seu guarda-mão, parecido com um olho, o que a tornava perturbadora.
— É um Honedge. — explicou um senhor, ao lado, que ouviu o comentário. — Diz a lenda que quando um guerreiro morre, e seu espírito não consegue descansar, sua alma é aprisionada em sua espada. — explicou. — Há séculos este Honedge está aqui, preso àquela pedra.
Eles observaram as pessoas depositando suas oferendas próximas à pedra.
— Isso é um tanto sinistro. — comentou o rapaz. — Parece que tem vários outros desse por aqui. — observou o som de criaturas transitando em volta, possivelmente outros Honedges.
— Eles não são o problema. — afirmou o senhor.
— Por que ninguém tentou tirá-lo de lá? — perguntou Serena.
O senhor virou-se para ela.
— Ninguém nunca conseguiu. — falou. — Quando alguém tenta tocar um Honedge sem sua permissão, o espírito drena totalmente a energia de vida da pessoa.
Quando todos depositaram o que tinham em volta da pedra, a senhora encontrada primeiramente por Charlie e Serena assumiu a frente, abaixando-se em forma de respeito ao Pokémon. Com a voz um pouco trêmula, disse:
— Trouxemos isto para o senhor… Sei que não é muito, mas foi o que conseguimos neste mês. — ela parou por alguns instantes e deu um passo para trás.
Sem qualquer um para proferí-la, uma frase soou dentro do ouvido de todos, ecoando com uma voz perversa e horripilante:
“O que quero já está aqui. Portanto, vão embora”
Um ruído metálico agudo e incômodo ecoou por toda a rota em um volume alto e intenso — talvez um golpe conhecido como Metal Sound. Todos saíram correndo desordenadamente tentando tapar os ouvidos, enquanto gritavam, assustados. Charlie preparou-se para seguir o mesmo destino, mas Serena o segurou pelo braço.
— Charlie… É o Calem.
O ruído cessou. De dentro do matagal denso, Calem saiu normalmente, quase intacto — se não por algumas sujeiras e rasgos em seu pijama, frutos da paisagem cheia de obstáculos que enfrentara. — em direção à espada. Parou à frente do Pokémon, e assim ficou, por alguns instantes. Charlie e Serena gritavam para que os ouvisse, mas o garoto não ouvia nada, pois sua mente estava ocupada demais para escutá-los.
Calem P.O.V
Se é apenas um sonho, por que não consigo acordar?
Não havia nada. Apenas um solo terroso em um tom de cinza, contrastando com um céu mesclado entre um vermelho rubro e um tom de roxo escuro. O único além de mim era um homem — se é que posso dizer que realmente era. — sentado em um trono a certa elevação de mim. Não consegui ver seu rosto, ou qualquer parte de seu corpo, porque vestia uma armadura completamente. Só ouvia uma voz por dentro do metal, que soava até meio ecoada.
— És um prazer conhecer-te, jovem rapaz. — disse, fazendo um sinal com sua mão. — E creio que prazer ainda maior és estar conhecendo-me.
Vendo seu convencimento, e sua linguagem um tanto arcaica, não vi motivos para estender qualquer conversa.
— O que quer de mim? — indaguei de uma vez.
Ele soltou uma risada descarada.
— Por que a pressa? Quando tu és um espírito cuja parcela da eternidade passou estático, vê que o tempo não é tão manipulável assim. — falou, com tanta naturalidade que quase não percebi que o significado de suas palavras era perturbador.
— O que quer de mim? — insisti.
Ele parou de rir, substituindo tudo por um tom de voz imperativo.
— Por tua insolência, rapaz, minha vontade seria de castigá-lo, como outrora teria feito, de forma que te arrependestes amargamente. — disse, e permaneci com a mesma expressão neutra no rosto, ainda que por dentro ardesse em medo. Ele amoleceu um pouco a voz. — Todavia, creio que são outros tempos, e partilhamos de comuns interesses.
Claro que eu sempre compartilho interesses com um homem de armadura que fala como se estivesse séculos atrás. Não que eu reclame de um bom vocabulário — o prefiro, na verdade, em detrimento de um vocabulário chulo.
— Estou ouvindo. — falei, interessado.
Ele suspirou — eu ouvi de dentro do capacete. — e começou a contar, em tom quase histórico:
— No tempo passado, fui um nobre guerreiro. Se me permite, na verdade, um rei. — só então percebi algo como uma coroa, um tanto acabada, em sua cabeça. — Toda batalha, todavia, é carregada de perdas. E numa destas, perdi minha vida.
Mais perturbador do que já estava, só descobrindo que ele estava morto. Fiz uma expressão involuntária que não sei definir como foi, mas a julgar por sua resposta, creio que não foi boa.
— Não chora por mim, que já faz certo tempo. — disse despojadamente. — Que um dia a Ave da Destruição carregaria minha alma eu já tinha consciência. — falou, como se não se queixasse de sua morte. — Porém, o que provocou-me foi a forma com que ocorrera.
Ele parou de falar, e deduzi que queria que eu perguntasse:
— E como ocorreu?
— Pelas mãos de um inimigo histórico, na frente de meus soldados. — respondeu, enfim, com um ódio disfarçado. — Perdemos, claramente, a batalha, e toda a guerra.
— Triste história. — falei com falsa piedade. Ele ignorou.
— Minha espada, meu maior símbolo, fora cravada na pedra que verás. E, claro, faleci. — não me diga. — ficando aprisionado a ela. A amarga vingança que me tomou parece ter sido o principal esqueleto que sustentou minha permanência neste mundo.
O encarei, esperando para ver onde queria chegar. Sonhos às vezes são bizarros.
— Posso fazer muita coisa nesta forma etérea, jovem rapaz. Contudo, nem tantas quanto gostaria. — disse ele com certo pesar. — Não posso deixar este objeto ao qual estou atrelado, nem tampouco sair atrás de minha vingança de forma desordenada e insensata. — não sabia a qual objeto se referia, mas assenti. — É cá que tu entra.
— Com todo o perdão, não entendo como eu me encaixo nessa história, vossa majestade. — o tratamento também carregava uma falsa e irônica admiração, mas se ele percebeu, não disse nada.
— Sei bem onde está meu antigo adversário. Pelos próprios motivos, também neste mundo ainda permanece. — falou, com certo gosto. — Indo atrás dele, terei a oportunidade de finalmente descansar em paz pela eternidade. — me parecia um bom plano. — Todavia, alcançá-lo não és uma tarefa fácil para um Pokémon.
Àquela altura já não entendia o que aquilo era: um homem, um espírito, ou um Pokémon. Apenas assenti, esperando para ver onde aquilo terminaria.
— Está ele entre os grandes. A Elite dos 4, conforme chamam-lhes. — naquele momento minha atenção fora atraída. — Curioso é o nome, mas não entrarei no mérito disso. A questão é que há apenas um jeito de alcançá-lo, seguindo as regras tradicionais que ainda se aplicam: um treinador enfrentar a Liga, na companhia de seus guerreiros.
— Entendo onde quer chegar. — disse. — Espera que eu, treinador, o leve comigo, — supus que era um Pokémon. — para que sua majestade vingue-se de seu antigo rival em um dia futuro?
— Sinteticamente, entendeste a mensagem.
— O que exatamente eu ganho com isso? Já que diz que é um acordo de interesse para ambas as partes.
— Ora, meu jovem rapaz. — ele riu. — Acredite nas palavras de um rei, especialmente naquele que já partiu, e que observa o mundo há séculos: sabemos reconhecer alguém que está destinado à grandeza. — por um momento me senti esquisitamente lisonjeado. — Teu presente pode ser medíocre, mas teu futuro ainda reserva-te muito, crê. Como uma pedra que precisa ser lapidada.
Fiquei a encará-lo, sem saber ao certo o que dizer. Destinado à grandeza. Potencial. Não tinha porque acreditar nele, mas queria. Ele parecia saber do que estava falando.
— Para tal, precisa de bons aliados. — concluiu. — Como guerreiro que já passou por muito, digo-lhe para confiar em minhas técnicas e conhecimentos. Creio que para tu és uma vantagem vezes maior ter-me a teu lado, visto que tantos gostariam deste privilégio. — falou sem qualquer humildade. — Peço apenas para que leve-me até minha vingança, em troca de tudo o que posso oferecer-te ao longo do trajeto.
Fiquei por alguns momentos atordoado e pensativo. Agora o impaciente era ele:
— A ideia de me subjugar a um garoto insolente e estúpido me é repugnante, acredita. — falou com certo nojo, como se jogasse fora todos os elogios que me dirigira momentos antes. — Se pudesse escrever minha própria história, jamais a colocaria desta maneira. Contudo, não somos totais autores deste livro que chamamos de vida. O passar dos séculos te faz repensar algumas prioridades. — disse ele.
Após a fala agressiva, amansou um pouco a voz — embora esta nunca fosse totalmente branda, sempre viesse em um tom grave e carregada de ódio e rancor. Falou em um volume tão baixo, como um último recurso — um pedido de socorro, talvez? — quase como uma súplica:
— Aceita a proposta, e sigamos com nosso caminho.
Passados alguns momentos, falei:
— O que devo fazer?
Talvez ele tivesse sorrido. Não tinha como saber, claro, porque vestia um enorme capacete de ferro que escondia o rosto. Mas se eu fosse um rei de algumas centenas de anos preso a uma espada e ganhasse uma segunda chance, eu sorriria.
— Pega a espada. — disse, por fim, em tom confiante.
Fim do P.O.V
Calem permanecia parado em frente à espada, enquanto todos se afastavam assustados.
— O que ele vai fazer? — indagou Charlie.
O garoto aproximou-se um pouco, com os braços estendidos.
— Ele vai pegar a espada? — supôs Serena.
Ambos tentaram impedi-lo, levando em conta o triste fim daqueles que foram seduzidos a fazê-lo antes, mas sentiram uma energia os impedindo de correr, ficando presos no lugar enquanto Calem se aproximava cada vez mais daquela espada amaldiçoada.
— Calem, pare! — gritou Charlie.
— Primo, não encoste. — falou Serena. — Eu imploro.
O rapaz estendeu o braço. Mais alguns metros. Um metro. Alguns centímetros. Sem hesitar, após sua lenta aproximação, pegou a espada pelo cabo, enquanto seus amigos soltavam um grito para que não o fizesse.
Ele ficou por alguns instantes estático, e um silêncio tenebroso instalou-se. Em seguida, fez um movimento único para cima, puxando a espada com enorme simplicidade, como se pegasse uma bola de algodão, de maneira que ela se soltasse da pedra, finalmente.
— Ele… Conseguiu? — comentou Charlie.
Novamente aqueles ecos e brados soavam na mente de Serena. Nos milésimos de instante em que a menina piscava, era como se ao invés da pura escuridão, tivesse vislumbres de um cenário muito diferente — uma batalha, sangue, espadas e orações. A madrugada pregava peças naqueles sonolentos.
Com a outra mão livre, Calem estendeu o braço. Ainda que o gesto parecesse esquisito, uma Luxury Ball chegou até essa mão, como se atraída por um imã. Ele tocou a esfera na espada, de forma que o Pokémon fosse comprimido em uma forma de energia avermelhada para dentro. A esfera sequer vibrou, completando a captura.
Image by Jinnoxious |
Os moradores da vila que ainda não haviam fugido, retornaram para ver o que acontecera. A senhora que explicara a história para Charlie e Serena sorriu, aliviada:
— Meus avós diziam que quem conseguisse retirá-lo era um escolhido de puro coração. Que seria capaz de executar grandiosidade, e finalmente acabar com o terror que assolava nosso vilarejo. — disse.
Calem permanecia naquele mesmo ponto, estático. Após alguns segundos, todavia, sentiu um choque, quase como se tivesse acabado de acordar e descobrisse que não estava em sua cama. Ficou olhando para os lados, perdido, enquanto seus amigos corriam até ele — agora sem nada os segurando.
— Cal… O que aconteceu? — perguntou Serena, o abraçando.
— Onde eu…
Após começar a tentar entender o que estava acontecendo, olhou para suas vestes, confuso.
— Por que eu estou de pijamas… No meio do mato? — olhou para baixo. — E DESCALÇO?!
— Ele definitivamente voltou. — confirmou Charlie.
— Serena, Charles, alguém me dê algo para calçar, por Arceus. Essa terra está toda nojenta. E estou todo coçando. — gritava ele, na ponta dos pés, tentando ao máximo não tocar em nada. — Onde está o palácio?
— Você veio até aqui descalço, — disse Charlie, repreensivo. — agora vai ter que voltar descalço.
— E não tem outro caminho para voltar… Se não pelo mato. — terminou ele.
Calem olhou para os lados, notando que em praticamente todas as direções a única coisa que via era um matagal alto, denso e escuro. Mil perguntas rondavam sua mente, mas principalmente “Por que eu estou aqui?”. O céu estava mais claro, uma vez que estava amanhecendo.
— Vocês só podem estar brincando. — resmungou. — Alguém por favor chame um helicóptero para nos levar embora.
A senhora inclinou a cabeça:
— Eu apenas imaginava que o escolhido fosse… Diferente.