Capítulo 2


Capítulo 02
Eu Quero me Libertar

O belo Sol saía por detrás das nuvens, que eram poucas naquela manhã. Kalos não estaria fria como de costume, mas também não faria calor. Vaniville teria um tempo bom naquele dia, que afinal de contas era tão especial.

Serena sentiu os raios de luz solar atravessando as cortinas e chegando à sua cama espaçosa, e mesmo sendo cedo e tendo dormido pouquíssimo, conseguiu despertar cheia de energia. Abriu os olhos com tranquilidade e fitou seu imenso quarto semi-iluminado. Finalmente. Pensou.

A menina se levantou e dobrou as cobertas da cama extensa, arrumando com calma cada detalhe, ouvindo algumas batidinhas na porta. Pediu para que entrassem, e se deparou com uma das empregadas, que a encarou com surpresa, logo a empurrando com calma e repreendendo-a.

— Senhorita, já disse para que não dobre as cobertas! Lembre-se, este é nosso trabalho. — alertou. — Não queremos que vossa senhoria tenha uma reação alérgica causada pelos ácaros.

— Não acho que alguma coisa dessas vá acontecer comigo, dona Cida. —respondeu a garota rindo levemente.

— E se vosso pai vir que estás fazendo meu trabalho ao invés de mim, irá me dar uma bronca daquelas! — a senhora balançou o dedo em sinal de repreensão.

— Sendo assim…

Dona Cida era uma das empregadas da família, provavelmente uma das mais antigas. Serena a conhecia tanto quanto conhecia o próprio pai. Era já uma senhora em seus cinquenta, sessenta anos, cujos cabelos castanhos emaranhados estavam sempre presos em um coque. Ela usava um par de óculos, e a pele tinha marcas de expressão que delatavam sua idade e cansaço. Serena gostava muito dela, em particular.

A garota foi para o closet, procurando alguma roupa para vestir, o que para ela seria uma grande tarefa, visto que seu armário possuía uma infinidade de roupas. Ela selecionou um vestido de tons suaves, bem bordado e altamente detalhado. Sapatos que combinavam, e em seguida se voltou para a penteadeira, escovando os longos cabelos louros.

— Sabe se o Calem já acordou? — indagou com doçura, encarando-a pelo reflexo do espelho.

Ela sequer retirou os olhos da tarefa.

— Desculpe, não sei, — respondeu. — mas ouvi vozes do escritório do seu pai.

Uma luz se acendeu na cabeça da garota.

— Perfeito! Perfeito, perfeito, perfeito! — exclamou, saltintante. — Talvez amanhã, Dona Cida, eu esteja por aí…

— Por aí onde, senhorita? —questionou, ajeitando os óculos.

— Essa é a melhor parte: Eu não sei! Posso estar em qualquer lugar, entende? —ela sorriu.

— Você e suas ideias, Serena…
...

Certo, sendo altamente sincero, como sempre, todos percebem que não sou a melhor das pessoas desse universo para falar sobre justiça e outras baboseiras sobre igualdade. Não conheci muitas, mas pelo que me dizem, não sou. Entretanto, mesmo não sendo uma dessas pessoas, sei que sofrer por causa de outra pessoa não é lá uma das coisas mais justas. Ou é?

— Calem, acho que devo lhe explicar a situação novamente. — Stevan não o encarava de frente. Estava na enorme janela de seu escritório, que dava uma vista para o jardim da mansão. O cômodo era grande e espaçoso, focado para os negócios e o trabalho do homem.

— Não é necessário, ambos sabemos muito bem o que estamos discutindo há tempos.

— A saída de Serena em uma jornada por Kalos. — disseram em uníssono.

Sim, é isso que me atormenta há anos. Desde que ela cismou que quer fazer isso, tagarela e tagarela sobre esse sonho estúpido. Eu, sinceramente, não me importo e não tenho nenhum motivo para influenciar na escolha dela. Porééééém…

— Você deve acompanhá-la. — disse Stevan, citando o calcanhar de Aquiles de todo aquele sonho. Aquele era o único motivo pelas tantas discussões geradas entre os três.

Calem estava sentado em uma poltrona, com braços e pernas cruzados. Ele agitava o pé com velocidade, como se estivesse dando uma sequência de chutes em uma bola imaginária. Ele levantou uma sobrancelha e soltou um suspiro longo e debochado.

— Chegamos ao impasse novamente. Não importa quantas vezes repetir isso, o problema vai continuar existindo. — riu. — Para quê a necessidade de eu, que em momento algum me manifestei ou me envolvi com esse sonho dela, ter que ceder?

Stevan nada disse, deixando um silêncio perturbador na sala. Calem, entretanto, não era do tipo que se rendia fácil em uma discussão, portanto aquele debate poderia durar um bom tempo.

Duas condições implicavam na proibição de Serena. Primeiro: Ela deveria ter completado quinze anos, o que já aconteceu. Segundo: Ela deveria estar acompanhada por “alguém”, que mais tarde se desdobrou de tal forma que se tornou “Calem”. Não se trata de egoísmo, só que meu sonho não é me arrastar igual uma besta pelos cantos de Kalos para conseguir emblemas e treinar bichos com poderes sobrenaturais. Me processem, crianças de dez anos.

— Sabe, Calem… — disse o homem. — Serena é como um diamante. Brilhante, mas frágil.

— Na realidade os diamantes são o material mais resistente encontrado na natureza…

— Detalhes sem importância. — Stevan fez um gesto com a mão como se expulsasse a ideia. — Nos preocupemos com o principal: Ela precisa de proteção.

— E por que eu? — indagou. — Convenhamos que qualquer um aqui é mais forte que eu. Contrate um segurança, ou sei lá o quê.

— Acha que vou mandar minha princesa para os confins de Kalos junto de algum homem qualquer? De forma alguma.

Neste exato instante, as portas do escritório se abriram, e Serena caiu para dentro, segurando um copo. Aparentemente deveria estar escutando do lado de fora e se apoiado na entrada, mas esta acabou cedendo e a derrubando para dentro. A menina corou por estar interrompendo, e recebeu um olhar reprovador do pai.

— Sinto desapontar, mas imagino que você não ouviu nada relevante. — Calem disse.

Stevan pigarreou, agora ele indo em direção das portas. Ele olhou para a filha, caída, e fez um sinal para que se levantasse. Ficou alguns instantes assim, apenas fitando o rosto dos garotos, e depois checou seu relógio de pulso — que pelo tamanho mais parecia um relógio de parede preso por uma corrente dourada — e abriu a porta do cômodo:

— De qualquer forma, não poderíamos prolongar muito mais nossa conversa. Receberei convidados aqui mesmo, então peço que se retirem. — pediu. — E me encontrem no jantar.

Sem dizer duas vezes, ambos os garotos saíram do escritório do homem. Serena parecia desapontada, visto que não estava funcionando exatamente como ela gostaria. Em sua imaginação, acordaria e saltitaria ao receber o aval e finalmente seguir no que alguns ainda chamavam de “jornada”. Mas ainda não tinha recebido a resposta positiva.

Calem evitou conversar, como sempre, mas Serena puxava assunto para tentar convencê-lo de forma indireta, como se o rapaz não pudesse perceber. Rumavam para o jardim da mansão, um dos locais favoritos da garota, embora tivessem que passar por uma boa dose de corredores até, enfim, encontrar o local marcado. Com uma vida inteira morando lá, sabia o caminho sem errar.




Apesar de terem um paisagista encarregado, Serena adorava cuidar das plantas, ou mais especificamente observá-las e analisá-las. Ela descobria coisas que já haviam sido descobertas, mas para ela era tudo novo. Tinham de todos os tipos de plantas e flores: desde arbustos até roseiras.

— Você não está mesmo disposto a aceitar. — observou a menina. — Vou fazer o possível para te tirar dessa. Pode deixar.

Calem arqueou as sobrancelhas, levantando o tom de voz.

— Você não percebeu que é isso que o seu pai quer? — reclamou. — Ele não quer que você vá, e sabe que eu não vou concordar, então prefere me incluir, para parecer que eu sou o vilão da história. Percebe?

— E qual o problema em sair em uma jornada, Cal? Inúmeras crianças fazem isso bem mais cedo do que nós! — argumentou

— Qual é o problema em não sair em uma jornada? — questionou. — Eu não sou uma das inúmeras crianças. E nem você.

— Eu já estou cansada de ficar aqui. Enjoada de viver todos os dias igualmente, sem sentir nada novo ou ver nada novo. Eu estou morta por dentro.

— Me convide para o enterro.

— É sério.

Ele coçou a cabeça. Serena apontou para o Grande Portão, como chamava. Do jardim era possível avistá-lo. No ponto onde todas as mansões se uniam, ficava um portão que dava para a Route 1. Mas Serena e Calem não sabiam disso, e nunca haviam sido autorizados a ir atrás dele. Viam este abrir apenas quando chegavam entregas, já que a família nunca saía sequer para fazer compras.

— Está vendo aquele portão? Nós nem sabemos o que tem atrás dele. Não te deixa louco não saber coisas tão simples porque nos foi imposto isso? — perguntou de forma ríspida, deixando um pouco de lado seu lado delicado, o que era raro.

— Se nossos familiares já viveram fora e preferiram morar aqui e construir família aqui é porque fora é bem pior. — se defendeu.

— Familiares nossos viveram e morreram aqui, Calem, sem conhecer o que tinha fora, se contentando com o que viam ou liam. — observou ela, cerrando suavemente os punhos. — É isso o quê você quer? Morrer sem sequer saber o que tem atrás do portão da sua casa? Porque não é o que eu quero.

Ela saiu de lá, nervosa, a passos rápidos e entrou novamente na mansão. Calem ficou ali, refletindo sobre a discussão, e pensando no por que deveria ceder se nada seria vantajoso a ele. Não fazia sentido em sua mente, mas teve que admitir que os argumentos de Serena lhe fizeram efeito.

Sua vida inteira foi ensinado que o que estava fora era perigoso, e permanecer dentro era o certo. Ele nunca desejou sair, nunca foi como Serena, que sempre procurava uma forma de pedir para sair. Mas talvez fizesse sentido, talvez o que sua prima queria não fosse algo tão anormal.

Certo, antes que digam que tenho coração de pedra, admito que me senti mal pela Serena. De verdade, não imaginava que a tal “jornada” tinha um valor tão vital. A ideia não me agrada nem um pouco, mas talvez ela não estivesse errada. E para mim estar dizendo isso, é porque é especial mesmo. Acabei tendo uma ideia, que me entreteve naquela tarde inteira.
...

Toda a família estava disposta na mesa de jantar de forma organizada. A mesa era longa, e estava muito bem arrumada, com serventes e empregados à sua volta, servindo a família Windsor. Stevan na cabeceira, e Serena e Calem um de frente para outro, quase que na outra ponta. Já escurecera, mas ainda não era muito tarde.

A menina estava quieta, tocando na comida levemente com o garfo. As conversas prevaleciam, mas para ela não passavam de murmúrios como um som de fundo para o barulho de sua mente. Seu silêncio não significava que estava totalmente silenciada, pois ainda pensava muito e tinha muitas coisas em mente. Até que não resistiu.

— Papai, cansei de esperar. — disse, fazendo com que todos se calassem. Precisou falar alto para ser ouvida do outro canto da mesa. — Prometeu falar comigo no jantar. Estou aguardando.

O homem olhou de canto, tomando um gole de sua bebida como se tivesse sido colocado em uma saia justa. Alguns sussurros puderam ser ouvidos, mas nada relevante. Ele pigarreou e falou como se discursasse, olhando para o rosto de todos, ao invés de apenas para a filha.

— Durante minha reunião hoje percebi alguns contratempos. Parece que uma organização recentemente está ganhando forças e causando problemas em alguns lugares de Kalos. Alguns estão atrás de dinheiro, nos tornando um alvo. Entretanto, estamos protegidos o suficiente. Porém…

Ela engoliu em seco.

— Porém… — reforçou, soluçante.

— Vocês fora daqui seriam iscas fáceis para qualquer um destes criminosos em potencial. Portanto, se não vejo total segurança dentro de minha própria casa, jamais terei ao soltar minha filha sem rumo em Kalos. — houve peso em suas palavras. — Sinto muito, Serena, mas não será desta vez.

Ela se levantou da mesa, apoiando as mãos na mesa. Elas suavam de nervosismo. Todos a fitaram, já que queriam seu próprio bem, mas não sabiam exatamente o que dizer. Ouviam a tempos seu desejo em deixar aquela casa, portanto não puderam evitar certa tristeza.

— Você… Você prometeu… — as palavras não saíram com a força que queria.

— Nem todas as promessas do mundo podem ser cumpridas. — Um dia você entenderá.

Bateu as mãos com a maior força que pôde.

— Você disse que minha mãe era uma treinadora, não era? Que ela também saiu em uma jornada, não saiu? — questionou retoricamente. — Ela é a única que eu gostaria de seguir o exemplo nesta família.

— Sua mãe não está aqui. — rebateu Stevan.

— E eu também não queria estar. — disparou.

— Não levante a voz para mim, mocinha. — alertou o pai.

— Para mim chega. De tudo. Se você tem medo do mundo, se defenda. Mas não proteja quem não quer ser protegido, porque eu quero viver e realizar os meus sonhos. — ela gritou, não conseguindo impedir que certas lágrimas escorressem de seus olhos.

Ela saiu correndo para fora, deixando Stevan com uma expressão amarga no rosto, de completo desgosto. Os murmúrios agora eram mais altos, e não teriam uma boa impressão da relação dos dois depois daquilo. Seus olhos se reviraram.

Naquele momento Calem se levantou e bateu suavemente com o talher em seu copo, para chamar a atenção de todos. Os olhares se voltaram para ele, inclusive de Stevan, que não disfarçou a agonia. O rapaz soltou um sorriso cínico, levantando o copo.

— Senhores, acho que agora a palavra é minha.
...

Meia hora se passou.

Serena estava no pequeno lago de sua mansão, chorando, misturando suas lágrimas com as águas claras que refletiam o luar naquela noite. Estava tudo silencioso, se não fosse por seus soluços abafados, enquanto ela se esgueirava para frente no parapeito da pontezinha. Ela queria gritar, queria chutar tudo, mas sabia que nunca conseguiria ser assim tão rebelde.




Ouviu alguns leves passos, e sentiu uma mão tocando-lhe um dos ombros de forma suave. Virou e deparou-se com a figura de Calem, que também fitava a paisagem noturna. Tinha que admitir que durante a noite o ambiente ficava ainda mais belo. Ela parou de olhar para o primo.

— Veio aqui jogar na minha cara? — questionou, meio rouca.

— Uau! A imagem que você tem de mim é tão degradante assim? — questionou, baixando o tom de voz. — É, eu não me surpreenderia se eu mesmo fizesse isso.

Ele fez uma pausa.

— Espero que você desmarque os compromissos nos próximos dias, porque nós iremos viajar. — avisou.

— Para onde?

— Para onde você quiser. — Calem revelou um sorriso de canto. — Digamos que finalmente terá sua “jornada”.

Ela pareceu ser tomada por uma luz naquela hora, se levantando e abraçando o primo.

— M-Mesmo? — mais lágrimas escorreram por seu rosto pálido.

— Achei que isso fosse uma coisa boa para você. — observou. — Por que está chorando?

— São lágrimas de alegria. — Serena riu de forma simpática. — Como você conseguiu convencê-los? Como você se convenceu?

Calem fez um gesto com os ombros como se insinuasse que não deveria subestimá-lo, e foi para o outro lado da ponte, observando o imenso jardim até, enfim, decidir se pronunciar. Serena, por outro lado, estava saltando de alegria, ainda que não conseguisse acreditar com toda a fé que seu desejo se realizaria.

— Eu sei que amanhã eu vou me arrepender disso. E vai ser seu castigo ter que me aguentar nessa viagem maluca. — prontificou-se, fazendo-a rir. — Mas acabei ficando um pouco tocado com o que você disse hoje de manhã, e acabei decidindo pesquisar mais. Eu encomendei dois Pokémons: um pra você e um para mim.

Ela ficou ainda mais feliz, correndo pela ponte para abraçá-lo com todas as suas forças. Não resistiu à pergunta.

— Para você? Você nem gosta de Pokémons! Mesmo que nunca tenha visto um fora da tevê. — brincou.

— Isso é verdade. Mas talvez eu também tenha encontrado um objetivo, pelo que procurei aí. — contou. — Algo me interessou um pouco, embora eu tivesse sido possuído pelo seu espírito, e tenha certeza que vou me arrepender depois.

— E que tipo de Pokémon você comprou para mim? — indagou, animada.

— Ah, isso vai ser surpresa. — disse, quase sendo esganado. — Chegam em três dias. Acha que consegue aguentar até lá?

— Posso fazer um esforço.

Ele riu, beijando suavemente sua testa e se retirou do lugar, voltando para dentro e para o jantar. Serena deveria se desculpar, mas com tanta felicidade, para ela não seria difícil. Foi tomado por seus pensamentos no caminho.

Devo dizer que até eu me surpreendi comigo mesmo. Acho que algum espírito bom se infiltrou em mim hoje e fez todas essas bondades. A ideia de sair ainda não me agrada, agora que a animação passou, mas acabei concordando, de qualquer forma. Mas por um segundo tudo valeu a pena quando escutei a energia e a felicidade que Serena colocou em seu grito.

— Eu vou sair em uma jornada!!